Fonte:Leon Tolstói. Biblioteca do Pensamento Vivo - 16: O Pensamento Vivo de Tolstoi, apresantado por Stefan Zweig. Livraria Martins Editora. Quinta parte, seção "Nikolas Palkine".
Se os homens acreditassem em Deus [...] então as palavras A Deus o que é de Deus, e a César o que é de César teriam para eles uma significação clara e precisa:
"Ao rei ou a qualquer pessoa, tudo o que quiser -- dirá o homem crente -- mas nunca o que é contrário à vontade de Deus. É necessário a César o meu dinheiro, ei-lo; minha casa, meu trabalho, tomai-os; minha mulher, meus filhos, minha vida tomai-os; tudo isto não é de Deus, mas de César. [Mas] se é preciso que eu levante e abaixe o açoite sobre o meu próximo isto tem relação com Deus, é um ato da minha vida do qual devo dar contas a Deus. Deus não me ordenou agir assim; portanto, não posso fazê-lo por César. Não posso algemar, prender, castigar, matar um homem, porque tudo isso tem relação com a minha vida e ela pertence a Deus; não posso dá-la, sacrificá-la a ninguém, senão a Deus."
As palavras A Deus o que é de Deus, significam para nós [porém] que devemos dar a Deus velas, missas, palavras e, em geral, tudo o que não é necessário a ninguém, e muito menos a Deus. E tudo o mais: toda a nossa vida, toda a santidade de nossa alma, que pertencem a Deus, damo-las a César, isto é (segundo significação desta palavra para os judeus) a um homem estranho, a quem odiamos.
Para se livrar dele, os donos do prado puseram-se a ceifá-lo, e, como era de esperar, nasceu ainda mais espesso. Ora, um bom e sábio proprietário da vizinhança, visitando os donos do prado, deu-lhes muito conselhos e lhes ensinou que deviam, não ceifar o joio, pois isto só serviria para propagá-lo, mas arrancá-lo pela raiz.
Os proprietários do prado, por não terem notado, dentre os conselhos do vizinho, o que se referia à necessidade de extirpar o joio, em vez de ceifá-lo; por não o terem compreendido, ou por não se conformarem com isso, devido a cálculos pessoais, continuaram a ceifar o joio e, consequentemente, a multiplicá-lo.
Nos anos seguintes, mais de uma pessoa lembraram-lhes o conselho do bom sábio vizinho, porém eles não escutaram e continuaram a agir como dantes. A ceifa do joio brotado tornou-se não somente um hábito, mas também até mesmo, uma tradição sagrada, e o campo se ia obstruindo cada vez mais.
Chegou finalmente o momento em que, no prado, só havia joio. Os proprietários se lamentavam e procuravam um remédio para a situação. Havia um, somente um: o que lhes indicara o bom e sábio vizinho. Continuaram, porém, sem querer aplicá-lo.
Nos últimos tempos, um transeunte, penalizado de ver devastado um campo tão bonito, procurou as instruções deixadas pelo sábio proprietário e esquecidas a um canto, em busca de uma que fosse apropriada à situação. Descobriu então a que dizia que o joio não deve ser ceifado, mas arrancado pela raiz. Mostrou aos proprietários do campo que tinham sido imprevidentes e lembrou-lhes que, havia muito tempo, um bom e sábio proprietário lhes chamara a atenção para isso.
Em vez de verificar a veracidade do que dizia o homem e, caso fosse exato, deixar de ceifar o joio, ou caso contrário, provar onde estava o erro, ou ainda aceitar incontinenti o conselho do sábio e bom proprietário, os donos do prado se decidiram pelo quarto alvitre e, mostrando-se ofendidos com o apelo que lhes fazia à memória o transeunte, puseram-se a invectivá-lo.
Uns qualificavam-no de orgulhoso, por pensar que fosse o único no mundo a compreender as instruções do bom proprietário. Outros chamavam-no falso intérprete, traidor, caluniador. Outros ainda, sem perceber que ele nada dissera de si, mas simplesmente lembrara os conselhos dum homem admirado por todos, afirmavam ser ele um indivíduo nocivo, desejoso de ver o joio a tal ponto multiplicado que o campo ficasse completamente perdido.
Ele pretende que não se ceife o joio - gritavam. Mas se não o destruírmos, ele se reproduzirá sempre e adeus campo! Então, foi-nos ele dado para que nele cultivássemos a erva má?
A opinião de que o homem era um insensato, um intérprete mentiroso, um monstro desejoso do mal de outrem, de tal modo se firmou, que quem não zombava dele cumulava-o de injúrias. A despeito de todas as explicações de que não desejava a multiplicação do joio, mas achava que destruí-lo é um dos principais deveres do dono da terra, compreendendo esta destruição do mesmo modo que o bom e sábio proprietário e somente lembrando os conselhos deste, não obstante tudo o que pudesse dizer, ninguém o escutou. Já ficara definitivamente decidido que ele estava louco de orgulho, que era um traidor à palavra do sábio e bom proprietário e um celerado tão negro, a ponto de convidar os outros a não mais destruir a erva má, antes a cuidá-la e favorecer sua reprodução.
* * *
O mesmo me aconteceu quando pleiteei a favor do preceito do Evangelho que recomenda não combater o mal pela violência. Esta regra foi dada por Cristo e todos os discípulos depois dele a repetiram, em todos os tempos e em todos os lugares. Seja por não a terem notado ou por não a terem compreendido, seja ainda por ter parecido muito difícil agir de acordo com ela, mais passa o tempo, mais é ela negligenciada e mais a disposição de vida dos homens dela se afasta. Enfim, aconteceu o que hoje verificamos: esta regra começa a parecer, aos olhos do mundo, como uma coisa nova, desconhecida, senão estranha e mesmo insensata.
Dizia que, segundo a doutrina cristã, o mal não será desenraizado pelo mal; que lutar contra o mal pela violência é simplesmente aumentar a sua força; que Jesus formalmente declarou que o mal se extirpa com o bem. Abençoai os que vos amaldiçoam, rezai pelos que vos ofendem, amai vossos inimigos e não tereis um inimigo. (Ensinamentos dos doze Apóstolos). Mostrava que o Evangelho afirma ser toda a vida do homem uma luta contra o mal, que é pela espiritualidade e pelo amor que o homem vence o mal, que, de todas as armas a usar contra o mal, Cristo exclui esta arma imprudente da violência, a luta contra o mal pelo mal.